quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Bate-papo com Alcides Nogueira



Bate-papo com ALCIDES NOGUEIRA, autor das novelas O amor está no ar, Torre de Babel, A Força de um Desejo, Ciranda de Pedra, entre outras, teatrólogo, distinguido já com o Prêmio Molière, com a peça sobre Rimbau e Verlaine: Poesia e Pólvora.


Era uma noite qualquer: faculdade, editora, miado dos nossos gatos e Raul incansável no cd. Sempre em fim de noite, quase começo de outro dia, entro no chat. Depois de colibri, as salas têm sido ponto de encontro de meus amigos virtuais. Naquele dia, não tinha ninguém conhecido. Comecei, então, a papear com duas ou três pessoas. Uma delas impressionou-se com minhas metáforas e me perguntou o que eu fazia; disse que era escritor e ele me respondeu que não tinha dúvida, pois logo percebera pelo meu estilo de teclar; falou-me que também era da classe. Vimos logo que tínhamos muita coisa em comum, e, para maior surpresa ainda, que Leila conhecera, na infância, através de correspondência, ele e sua irmã. Neste dia, ganhei um amigo incrível e Leila reencontrou companheiros queridos separados pelo tempo. E dizem que o micro é algo frio... (UF)
Urha - Você começou sua carreira dramatúrgica no teatro ou na TV? Fale deste início.
Alcides - Comecei a fazer teatro amador, ainda em Botucatu, interior de São Paulo, onde nasci. Minha primeira peça profissional, em São Paulo, aconteceu em 1977 — A FARSA DA NOIVA BOMBARDEADA — uma peça que lançou artistas como Miguel Magno (falecido em 2009) e Cida Moreyra, entre outros autores. Ficou apenas um mês porque foi censurada pelo Armando Falcão, ministro da justiça da ditadura. Foi em 81 que consegui meu primeiro sucesso, LUA DE CETIM, que me deu o primeiro Molière e outros prêmios. Foi a partir daí que a televisão se interessou pelo meu trabalhão e a Globo me convidou para escrever um especial sobre o Chico Xavier, com direção do Vanucci. Depois da explosão de FELIZ ANO VELHO (em 1983, quando ganhei meu segundo Molière e todos os prêmios da temporada), aí veio o convite para fazer novelas. E a primeira foi LIVRE PRA VOAR, onde colaborei com Walther Negrão (1984). A partir disso, teatro e tv seguiram em paralelo.
Leila - "Ventania", sua peça de teatro atual esta em cartaz em SP depois delonga temporada no Rio. Me parece que ela esta sendo mais polemica para os paulistas do que para os cariocas, que amaram a peca. A que você atribui esta reação?
Alcides - Foi o mesmo sucesso que pintou no Rio. Mas houve reações mais fortes. Talvez São Paulo identifique mais proximamente o conflito sexualidade /religiosidade de que trata a peça, e isso dói mais na ferida do paulistano. Também porque foi aqui que o Zé Vicente (de quem em termos a peça fala) morou a maior parte do tempo e produziu muito de sua obra. O paulistano é mais conservador que o carioca em muitos aspectos, embora a cidade em si não. Os valores daqui são diferentes e a postura do Rio em relação ao teatro é mais light (no bom sentido).
Urha - Para você qual a diferença fundamental entre escrever para o teatro? E para a TV?
Alcides - Acabamento. No teatro, você tem a possibilidade de ficar muito mais tempo gerando o texto, dando a ele o acabamento necessário. Na televisão, por forca da pressa, isso é impossível. Você tem de parir um capitulo de novela por dia e tudo bem... No teatro também existe uma integração muito mais intensa entre autor, diretor e elenco. Na televisão, isso acaba se diluindo. Mas eu gosto muito dos dois veículos e sinto muito prazer escrevendo para mundos tao diferentes.
Urha - Além de escrever, o que você gosta de fazer?
Alcides - Eu ouço muita música, leio muito, adoro artes plásticas (vejo todas as expo que posso), vou ao cinema, ao teatro, namoro, jogo cartas e bingo, viajo...
Leila - Você trabalha melhor "sob pressão"?
Alcides - Na televisão sim, mesmo porque é inevitável. Mas, quando escrevo para o teatro, quero toda a paz do mundo. Nem sempre isso é possível, mas quando consigo me isolar do mundo para criar uma peça, é dos deuses.
Leila - E "inspiração"... e' "dom divino"?...
Alcides - Não, não acredito nisso. Acho que todo autor é antenado, tem insights, consegue visualizar muita coisa... Mas inspiração é um conceito antigo... Também não acho que seja aquela historia de transpiração... Para mim, escrever é exercício sim, mas as vezes as coisas brotam em borbotões, como se fosse uma escrita automática, e você acaba nem mexendo muito no texto. Outras, você escreve e reescreve mil vezes uma cena, para chegar naquilo que está querendo dizer.
Leila - Qual a novela que lhe deu mais trabalho? E a que lhe deu maior alegria?
Alcides - A novela que mais me deu trabalho foi SALVADOR DA PÁTRIA, quando escrevi com o Lauro Cesar Muniz. Sofremos pressão de todos os lados, o Lauro ficou doente e levei a novela sozinho durante um bom tempo. Foi estressante, embora o resultado tenha sido muito bom. É a novela com a segunda melhor audiência da Globo (74%). As que me deram mais alegria foram PRÓXIMA VÍTIMA, que transcorreu em vôo cruzeiro todo o tempo e mobilizou todo o pais, graças a trama muito bem armada do Silvio de Abreu e O AMOR ESTÁ NO AR, que, além de ser a minha primeira novela solo, sinto uma harmonia muito grande com direção, com os co-autores Bosco Brasil e Filipe Miguez, e a repercussão que provoca, mesmo sendo uma novela de seis horas, hoje um horário muito complicado.
Urha - Em literatura, quais os autores preferidos em prosa e verso?
Alcides - Em teatro, Tchecov, Jorge Andrade, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos e Eugene O'Neal. Em literatura, Proust, Balzac, Machado, Eça de Queiroz, Flaubert, Genet, Updike, Fante, Gertrude Stein e Joyce. Em poesia, Rimbaud, Sylvia Beach, João Cabral, Mallarme, Baudelaire, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Kavafis.
Urha - Voltando ao teatro: quais são seus novos projetos?
Alcides - Colocar em cena uma peça escrita em 89, minha única inédita, PARIS - BELFORT, que é uma releitura muito pessoal das Três Irmãs, de Tchecov; escrever a terceira parte da minha trilogia sobre o discurso moderno, que começou com a ÓPERA JOYCE, seguiu com O RETRATO DE GERTRUDE STEIN QUANDO HOMEM e terminará com O BARCO BÊBADO E SEU TIMONEIRO, sobre a relação Rimbaud e Verlaine. Também quero escrever o quarto ato da LUA DE CETIM, abarcando o período Collor.
Leila - Como é o seu dia? Sobra tempo para o lazer?
Alcides - Quando estou escrevendo novela, não. Nem para o lazer sexual. Mas quando estou em férias da TV, procuro sair de São Paulo, ir a Paris, ver muito teatro e cinema, ir a concertos, encontrar amigos, jogar conversa fora etc...
Urha - E' possível fazer novos amigos, a esta altura da fama?
Alcides- Sim. Você é um exemplo disso. É muito mais difícil do que antigamente, pois o approach das pessoas é meio esquisito. Sempre existe aquela historia de imaginar que ser meu amigo poderá abrir portas. Besteira. A gente abre portas pelos méritos próprios e não apropriados de outras pessoas. Também é complicada a aproximação afetiva, sentimental, sexual... Porque sempre fica a impressão de que as pessoas estão transando com a imagem publica e não com o Alcides de sempre... Mas tenho levado bem isso. Eu procuro me resguardar, sem abrir mão da minha liberdade. Até mesmo a liberdade de me dar mal em determinadas situações.
Urha - O que você gosta menos na vida?
Alcides - A falta de respeito. Isso inclui a falta de respeito aos direitos humanos, a falta de respeito ao nosso quotidiano, a falta de respeito que as vezes nos mesmos sentimos com relação a gente... Não posso deixar de sofrer quando vejo a incompreensão do governo com as crianças de rua, com os sem-terra, com os doentes e idosos... Dói. Dói muito. A vida fica feia e suja se compactuamos com isso.
Leila - O que você preza mais nas pessoas? E nos seus personagens?
Alcides - A integridade. Tanto nas pessoas como em personagens. Porque, para mim, integridade não é sinônimo de maniqueísmo. A gente pode errar sim, mas tem de ter a humildade e a nobreza em enxergar isso... Claro que, quando falo de pessoas, isso é fundamental, pois inclui caráter (não suporto pessoas de má índole)... Nas personagens, muitas vezes, carrego nas tintas, para que os signos de vilania sejam decodificáveis de forma mais simples e ampla, principalmente na televisão.
Leila - O teu teatro sempre foi assim cortante como "Ventania"? Por quê a mudança, e quando ocorreu?
Alcides - Meu teatro era mais condescendente. Talvez eu tivesse medo de colocar no palco meus fantasmas, sem nenhum tipo de tapadeira. Por mais chocantes e duros que fossem. Quando comecei a ver que minha geração - muitos amigos, quase todos - tinham morrido, ou na época da repressão, ou depois, com a Aids (outra forma de repressão), eu percebi que tinha de colocar em cena todas as minhas coisas - doessem ou não em mim ou no espectador. Acho que esse dilaceramento sempre houve. Estava oculto ou preservado em algum ponto, muitas vezes recoberto pela poética da minha palavra (que não abandonei nem pretendo, pois gosto), mas agora é tudo ou nada. Não tenho o que perder. Não vou deixar passar a vida sem que as pessoas saibam que o Alcides Nogueira pensa desse jeito. É a minha forma de estar inteiramente no mundo, embora o Abujamra me chame de o guerrilheiro do nada (risos). O que me deixa muito feliz!
Urha - Como se dá o seu processo de criação?
Alcides - Basicamente pela maturação. Isso, tanto no teatro quanto na tv. Pinta algo em minha cabeça. Isso vai adquirindo contornos, delineamentos. Vou deixando, deixando... Um dia, sinto a necessidade e a urgência de colocar isso no papel. Aí a coisa se torna quase física. Entra a fase do exercício (se for teatro). Escrevo, escrevo, para ver o que é melhor... Como disse antes, muitas vezes a coisa vem com tudo. ÓPERA JOYCE, que considero um dos meus melhores trabalhos, nasceu em um dia. Foi como se estivesse tomado pela energia da escrita. PARIS-BELFORT me consumiu seis meses de escrita exaustiva.
Urha - Como e' estar no primeiro time da Globo?
Alcides - Por um lado, extremamente gratificante. Muita gente quer isso e não consegue. E eu não consegui de graça, mas por conta de muito trabalho. Foram nove novelas como colaborador e depois como co-autor. Vem aquela sensação de conquista, de reconhecimento. Por outro lado, as dificuldades que citei de aproximação com as pessoas, de viver mais calmamente a vida, isso tudo fica mais difícil... O importante para mim não é estar no primeiro time da Globo, mas ter a possibilidade de mostrar meu trabalho e ver que a mídia reconhece, muito mais pessoas são atingidas por ele, as portas para o teatro se abrem mais facilmente pois se trata daquele autor da novela x...
Leila - "O amor está no ar" é a primeira novela que você assina sozinho. E' uma novela romântica? Você acha que só o teatro pode veicular obras fortes, que tratem de tabus e preconceitos?
Alcides - O AMOR ESTÁ NO AR tem sua dose de romantismo sim. Eu fui buscar em Jane Austen, na sabedoria dela, muita coisa que está na minha historia. No horário das seis é muito mais difícil colocar temas mais polêmicos. Mesmo assim, estou tratando do judaísmo. É a primeira vez que se vê isso na tv brasileira. E é incrível, pois temos no pais a terceira maior colônia judaica do mundo. Também falo de ódio, de poder, da troca de dinheiro... Em a PRÓXIMA VÍTIMA, mesmo com muitas limitações, foi possível tratar da homossexualidade e do racismo de forma muito clara e digna. Obviamente no teatro tudo isso é mais fácil. Mas atinge menos. Um capitulo de novela da Globo é visto por milhões de pessoas. Uma obra teatral, pois mais sucesso que faca, não leva mais que milhares de pessoas, durante toda a temporada.
Leila - E tem OVNI na novela, não é? Você acredita em UFOS?
Alcides - Acredito sim. Acho muita impertinência e presunção do terráqueo achar que está sozinho nesse universo todo. Mas na novela o assunto entra de forma diferente que no ARQUIVO X ou na JORNADA NAS ESTRELAS, por exemplo. A questão da ufologia, na minha novela, está diretamente ligada aos conflitos interiores vividos pela personagem da Natalia Lage, a Luiza. Fica sempre a duvida se ela realmente está mantendo contatos ou tudo aquilo não é a forma que ela encontrou para falar dos seus problemas, para exteriorizar suas dificuldades com o mundo, com as pessoas...
Urha - Fale da sua experiência com os outros autores com os quais trabalhou.
Alcides - Eu adorei trabalhar com alguns deles. Sou extremamente grato ao Walther Negrão, que me ensinou o beabá da novela, com toda a sua generosidade. Abriu seu baú de experiência e disse: pega, Alcides, e se vira... Foi maravilhoso. O Silvio de Abreu continua sendo, alem de um autor a quem sempre recorro para me dar dicas, para fazer uma boa analise do que estou fazendo, um amigo de todas as horas; adorei trabalhar com o Gilberto Braga, que tem uma sensibilidade fantástica... Com outros, a coisa foi mais difícil. Uma co-autoria sempre esbarra na questão do ego, da criatividade que se choca... em muita coisa, com as quais precisamos lidar com luva de pelica. E nem sempre isso acontece. Aí, surgem situações de choque, magoas etc...
Leila - Você sente influencia de algum autor em particular em suas obras?
Alcides - No teatro, sinto muito a influencia de Tchecov e Jorge Andrade. E de todos os poetas que amo. Porque meu teatro chega a ser quase um poema dramático, tal a força com que a poesia me domina.
Leila - Muitos intelectuais discordam de que novela de TV seja literatura. E para você? Por que?
Alcides - É literatura sim. Talvez sem o acabamento desejado. Se pudéssemos escrever um capitulo por semana, com certeza teríamos sempre belas cenas, pungentes, dolorosas, alegres, doidas, criticas etc... Mas a pressa prejudica isso. No entanto, a televisão, no Brasil, acabou suprindo a leitura. Infelizmente, claro. Mas melhor ver um bom especial ou uma novela bem escrita (e há muitas), do que continuar absolutamente fora do jogo das idéias.
Urha - E como tem sido sua vivência/experiência com os vários diretores de teatro com os quais você tem trabalhado?
Alcides - Eu me dei muito bem com quase todos. Sempre houve troca, respeito, entendimento. Claro que o filtro do diretor nem sempre é o mesmo do autor. Nem a óptica. Mas a somatória desses filtros, juntando-se a maneira como o autor veste a personagem, provoca uma obra maior do que aquela que está no papel. Particularmente, alguns diretores conseguiram a tradução do meu universo de maneira muito bonita. O Márcio Aurélio, o Abujamra, o Paulo Betti, o Gabriel Vilella, o Francisco Medeiros, foram diretores que souberam exatamente o que eu estava querendo dizer e, não abandonando em momento algum o conceito estético deles, conseguiram um casamento maravilhoso entre texto e encenação.
Leila - Você sempre quis ser escritor? Sempre acreditou que ia dar certo?
Alcides - Sempre quis ser escritor. Quanto ao dar certo, nunca me preocupei com isso. As coisas foram acontecendo de forma natural, como um rio que corre pela aldeia... Deram certo, ainda bem. Se não tivesse sido assim, eu continuaria escrevendo. Talvez tivesse de achar outra forma de sobrevivência e seria infeliz. Mas eu não abriria mão nunca da minha escrita. É o meu canal com o mundo. Não há como viver sem ele.
Urha - Quem mais o incentivou na sua carreira?
Alcides - Minha família sempre foi muito ligada as artes. E alguns professores. Tive a sorte de pertencer a uma geração onde a manifestação artística era uma forma de posicionamento como cidadão, e isso me deixou muito mais a vontade para ir em frente. Não sei como hoje as coisas acontecem para quem começa uma carreira de escritor, ou de pintor, ou de músico. Houve muitas vezes em que as coisas pareciam estar minguando, principalmente durante a ditadura. Mas acho que, como bom escorpiniano, consigo sobreviver e renascer.
Urha - E a Internet, entrou pela sua vida? Como?
Alcides - Como uma teia mesmo. Que foi me envolvendo. Comecei como curioso. Sou muito curioso com todo tipo de comunicação, e todo tipo de modernidade. Hoje não uso tanto a net como fazia no inicio. Cheguei a ficar dias e dias conectado, principalmente em chats e visitando sites americanos... Agora estou mais controlado, mesmo porque não tenho muito tempo. Mas a net me ajudou a conhecer pessoas incríveis e a reencontrar outras. Você, Urha, conheci por meio da net, e a Leila eu reencontrei. O seu livro, Urhacy, sobre os chats, é lindo e desvenda de maneira brilhante esse mundo virtual. As pessoas devem le-lo, para entenderem porque a net hoje é realmente um grande canal, que mitiga um pouco a solidão do final de milênio.
Leila - Que dica você daria para os autores que estão começando?
Alcides - Ler, ler muito. Principalmente poesia, que é a síntese de toda a palavra e de toda a emoção. E tentar todos os canais, não importa quais sejam. Teatro, literatura, televisão... E sem preconceito. Há espaço para todo mundo...
Urha - E as suas poesias, saem da gaveta?...
Alcides - Por enquanto não. Ainda não me sinto um bom poeta. A poesia é a mais difícil tradução das emoções, porque é contida e espraiada ao mesmo tempo. Cálida e cortante. Verborrágica e econômica. Não, ainda não estão maduras. Um dia sairão.

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