segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

ALICE - Rubens da Cunha






Dedicado a minha avó, Alice, que era analfabeta. À professora Silana Dias e suas alunas da terceira idade. A todas as pessoas que ainda não desistiram.

É o primeiro dia de Alice na escola. Tem 72 anos. Olha tudo meio nervosa, achando que seu tempo passou, que aquilo tudo é bobagem da neta. Cumprimenta os outros, a professora a recebe com cuidado. Alice está diante de algo que nunca esteve: um quadro-negro, uma professora, cadernos, lápis, borracha e amigos de escola.
Alice nunca soube bem porque não aprendeu a ler nem escrever. A vida no cantão onde vivia, a escola muito longe, pai e mãe analfabetos, teve de trabalhar desde cedo, cuidando dos irmãos, da casa, dos bichos. A vida era simples e boa, depois Alice cresceu, conheceu Armindo, e se casou com ele, depois vieram os filhos e Alice foi ficando na sua vida de só cuidar dos outros e se esquecendo um pouco de si. Era feliz, sabia bem até onde a vida podia ir, e a vida andava como Deus queria, pelo menos era assim que Alice pensava, mas o tempo passou, a energia elétrica chegou ao seu lugar, a cidade pareceu ficar mais perto, coisas modernas vieram, chuveiro elétrico, máquina de lavar, televisão. Alice olhava aquilo tudo com certo medo, medo de não saber usar aqueles aparelhos e de ela mesma ser substituída por um deles, medo de não ser mais a cuidadora de tudo.
Algum tempo depois, o marido faleceu, os filhos já tinham vindo para a cidade e trouxeram a mãe. Ela não gostava do barulho daquilo tudo, “sou bicho do mato”, sempre dizia. A cidade lhe parecia muito grande, muito ligeira, e tinha todas essas letras, tudo tinha de ser lido. Era a tristeza de Alice: vir para a cidade e não conseguir ser livre, até para ir à igreja tinha certo receio. Lá no seu lugar sabia se virar, não dependia de ninguém para fazer as coisas, mas aqui, nesse mundão de concreto e asfalto, não pode ir a lugar nenhum sem ter de ficar pedindo informações, essa vergonha que só quem não sabe ler sabe dizer bem direitinho o que é. Aquilo tudo estava fazendo de Alice uma pessoa reclusa. Ficava muito mais tempo em casa do que o normal, quem percebeu melhor isso foi a neta mais velha. Com um pouco de conversa, descobriu que o “mal” da avó era não saber ler nem escrever, ficar feito barata tonta no meio das pessoas. A neta então providenciou tudo e matriculou Alice na escola.
Ao sair do primeiro dia de aula, a neta cá fora esperando, viu no rosto da avó uma iluminação diferente. Ela veio rindo, havia se instalado naquele corpo cansado de mulher uma esperança bem descansada, bem pronta para tudo de novo.
A cada avanço, um novo sorriso no rosto: as primeiras letras, sílabas, o nome, o primeiro texto lido com calma, a voz trêmula, os dedos acompanhando as linhas. Alice, aquela que sempre cuidou de tudo, cuida agora de si mesma com uma alegria gigante. Esses dias, o neto lhe perguntou naquele jeito adolescente de falar: “E aí vó, tá lendo tudo”? Alice, adolescentemente, respondeu: “Tô lendo tudo, tô lendo até o futuro”.





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