terça-feira, 10 de janeiro de 2012

UM SÉQUITO DE ESPELHOS

De repente a gente se pergunta: quem sou eu agora? É como se entre a adolescência e hoje houvesse transcorrido uma coisa meio linear, por mais ziguezagueante e desnorteante que tenha sido a trajetória, a nossa. Os caminhos eram embaraçados, os fatos confusos, os amores incertos, a solidão duvidosa, os desejos obscuros, mas por trás do desejo, da solidão, dos amores, dos fatos e dos caminhos havia eu, um eu, um nós.
Esse composto de opiniões, atitudes, comportamentos e posturas era eu, éramos nós.
Todos os amigos nos identificavam e nos reconheciam.
E eis que, de repente, sem me perder, encontro-me assim: lugar comum. Tranquilamente lugar comum, serenamente perdedora, quase hippie de novo. A hippie que nunca deixei de ser encontra seu próprio reflexo nesta senhora que não tem mais tempo de mudar tudo de uma vez por todas, e vive a vida. Uma espécie de aposentadoria criativa, nela o ego não se impõe, dissolve-se. Como se, de novo, a qualquer momento, alguém pudesse apertar um botão - um simples apertar de botão - e o mundo, o nosso, voaria pelos ares. Como qualquer um se sentiria assim, abotoado e ameaçado de morte por circunstâncias políticas incompreensíveis e antepassadas? Livre.
Hoje nossos filhos vivem pacificamente, como almas experientes, como aventureiros que já experimentaram de tudo e podem ser tranquilos, essas crianças que não têm fome de liberdade, têm liberdade. Nós continuaremos coroas rebeldes, que necessitam transgredir, modificar as coisas e apontar novos caminhos e rápido. Rápido, não por causa da idade, mas por causa deles, dos botões. Ninguém apertou o botão, o tempo passou e nós amadurecemos, quase milagrosamente sobrevivemos. E só quem já experimentou viver assim, com um botão apontado para sua jovem cabeça, sabe que é preciso fugir dos espelhos. Dos pais refletidos, de nossa própria história, infância, marcas, cicatrizes, recompensas pavlovianas, projeções freudianas, sonhos junguianos, certezas cartesianas. Precisamos apagar as imagens e ser ninguém. Absolutamente ninguém. Quando eu era jovem, bem jovem, gostava de dizer que poderia amanhecer freira, puta, hippie, intelectual, camponesa.
Que o futuro era imenso, do tamanho do descompromisso. Derrubaram o muro de Berlim e os cacos viraram souvenirs. A Aids não mata quem não fode. Éramos cobaias, ameaçados de morte e por isso livres. Éramos assim, não éramos? E não era tudo, Leila, por causa dos botões? Não tinha a Aids, não tinha o compromisso com o sucesso, era preciso uma coisa só: viver.
Éramos jovens jurados de morte. E tudo pro causa dos botões, dos dedos anônimos, brancos, imóveis, trêmulos, suspensos sobre os botões.

Glória Horta

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