domingo, 19 de fevereiro de 2017

Rubens da Cunha, Delírios Urbanos e solitários


          
 Fechada em casa, a vida não traz poemas, falas de passagem, gritos infantis. A vida não quer que eu silencie em torno de meu desespero. Sou um animal equivocado: as horas passam em mim embranquecendo os pêlos, esvaindo os dentes, flaciando a pele. Envelhecer sem ter escrito a salvação. Envelhecer sem ter vencido o tempo. O mundo lá fora esbate-se, comunga, caminha, e eu aqui, fechado, lendo Pessoa, mentindo-me, sou Ele quando eu quiser.
           Saio. No ônibus “as gentes” conversam, cada um com sua história, cada um carregando seus pequenos impropérios. Meus ouvidos recebem recortes de vozes. Mosaico de abstrações. Tento neste vozerio captar o poema que me salvará, que me permanecerá no tempo. Sei que o poema é feito de palavra e delírio, na mesma proporção, alquimia rara. Sei que dentro do ônibus, saindo das bocas, vindo até meus ouvidos os poemas voam. Mas não capto seu vôo, não consigo ordenar nada. Tenho pensado demais em mim. O egoísmo é um contumaz assassino da poesia.
           Caminhando, amparado em solidão, vislumbro os mesmos pedintes, são como as esquinas da cidade: fixos e surpreendentes. Apesar da aparência costumeira jamais sabe-se o que está do outro lado. A mulher vende rosas. Um qualquer finge-se estátua e me assusta. Um outro anda com mãos e pés tortos. A cidade não acaricia seus filhos errados. Eu não sou um deles. Não tenho coragem suficiente. Olho, desolho, reolho, o poema em cada absurdo que provocam nos transeuntes: “um trocado pelo amor de Deus”. A poesia está em cada uma destas palavras, não tanto em Deus que anda meio envergonhado de seus criados. Tento e não consigo arrancar um texto da cidade. Os miseráveis, os anônimos, os falhos, sou cada um deles e nada me acontece. A inspiração me desdenha. Não tenho revolta. Resta-me o suor na testa. O suor no texto.


           Chego em casa. Desacostumado. Inquieto. A vida ferve na chaleira. Café. Pão. Falta a fome. Invento. Os dedos contritos. Não podiam tremer nem segredar vazios. Fizeram. O branco agiganta-se, corrompe as paredes da alma. O poema desenha-se criança e elefante, céu e cardume, voz e pesadelo, amor e atleta. O poema se fluxa pelo inconsciente. Deságua e acontece. Durmo entre a salvação e o esquecimento. O poema insone pasta meus poros enquanto morro mais um pouco.

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